Crónica de Mário de Sousa | O homem de bronze

 

Crónica de Mário de Sousa
O homem de bronze

 

A praça, como a maioria das praças era retangular e tinha uma estátua no meio. Nas costas do Homem de Bronze, duas ruelas estreitas e sinuosas desfaziam a última curva de encontro aos gavetos que as terminavam. Orlando a placa central, árvores descarnadas de folhas, exibiam magros braços erguidos, implorando aos céus sabe-se lá o quê. No outro topo da praça duas igrejas flanqueavam a avenida que lá desaguava

Gente, gente sem cor nos rostos, em passo miúdo deslizava sem ruído pelas pedras gastas dos passeios, estreitos e desnivelados, humedecidos pelas gotas de chuva que as nuvens cinzentas deixavam escapar, mal espremidas por um vento tão cinzento como a luz daquela tarde de Outono. O chão da praça, amarelado pelo verde ressequido e agora molhado das folhas caídas, parecia pastoso e escorregadio. Os putos patinavam sobre aquele lodo sem mar, fazendo prodígios de equilíbrio, por vezes chocando de forma desastrada com transeuntes ocupados nos caminhos dos seus destinos.

Cinzento, húmido, pegajoso, o ar parecia pesado quando aspirado pelas narinas cansadas de toda aquela gente atarefada em cumprir um caminho determinado, atravessando um destino, não olhando para trás, por medo ou por respeito ao cumprimento do dever de chegar aonde gostaria.

Arrepiei-me com os guinchos das rodas de um carro elétrico curvando ao longo da ruela sinuosa da direita. Havia de parar no Calhariz. Lá sairiam uns e entrariam outros, todos cansados e desejosos uns de partir, outros de chegar, que quanto mais cedo melhor. Havia horas que antecipavam o prazer de terminarem mais um dia. Que bom que iria ser.

Mas ao intuir tudo isto, sentia como que um susto entrecortado tentando romper o meu peito. Assustei-me com a cara terrivelmente séria do Homem de Bronze que, de lá de cima do seu pedestal, parecia interrogar-me sobre o destino de todas aquelas formigas. E apeteceu-me fugir, mas como no sonho, as pernas pesavam-me chumbo e não saíram do mesmo sítio. Devagar, muito devagar arrastei um pé e depois outro, e outro, e outro ainda, e atravessei a rua de supetão.

A porta da igreja estava aberta, escura, era a hora das Vésperas, e eu fugi lá para dentro caindo de joelhos no meio da gente que já lá se encontrava, desenrolando orações, umas sentidas outras… talvez! Sítio feérico. Estava húmido e eu a transpirar, tão frio. Olhei o Cristo crucificado e também Ele lá do alto, parecia-me questionar sobre todas aquelas almas ali presentes, desfiando frases sentidas como preces. Que gente tão só, que desconforto, que medo. Levantei-me e procurei refúgio junto de um altar esfuziantemente iluminado por dezenas de velas, que bruxuleavam ao de leve, sopradas por um ar tumefacto e bafiento. Mas as velas não tinham calor, não queimavam as minhas mãos, quando as afaguei na esperança de que as suas chamas secassem este suor frio que me escorria pelas costas. Corri para fora, lívido, e respirei o ar às golfadas até à saciedade.

Ouvi então ao meu lado: – Esmola para o aleijadinho que não pode trabalhar! Olhei para baixo e vi um velho, meio deitado nas pedras frias e duras, braço estendido, roupas esburacadas, implorando. Senti um alívio tremendo e qualquer coisa eclodindo, dentro de mim, restituiu a liberdade ao meu peito oprimido. Desatei a rir violentamente e voltando-me para o Homem de Bronze, gritei: vês? Para este já não há dúvidas, já sabe o seu destino!


Inspirado na pintura de Abel Manta “Praça Camões”, 1954

Mafra, 28 de Abril de 2022

Mário de Sousa

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